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Altar pessoal de Kaliandra Kali |
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O povo cigano é
envolvido de mistérios. Da Lua Cheia, retira a magia; da dança e da
música, toda a alegria; da natureza, a força e a energia. E para Santa
Sara, ou Sarah Kali (pronuncia Kalí), ele volta sua fé, seus pedidos e
seus agradecimentos.
A religiosidade faz
parte da vida dos ciganos, desde o nascimento até a morte, e para
poderem cultuar seus santos sem serem vítimas dos preconceitos dos
não-ciganos, costumavam se converter à religião dominante do local em
que se estabeleciam. Então, os grupos que foram para a Europa se
declararam católicos e se ligaram a Santa Sara que tinha origens
misteriosas e a pele morena, como eles.
Para desvendar um pouco
do mistério que acompanha Santa Sara e descobrir porque ela é tão
venerada pelos ciganos, é preciso voltar ao tempo. Ela é considerada uma
santa católica, mas não passou pelos processos de canonização desta
igreja. Também se liga a uma forte tradição européia medieval, o culto
às virgens negras. Muitas santidades femininas, representadas por
estátuas negras, foram adoradas durante toda a Idade Média. Durante a
Santa Inquisição, os ciganos eram considerados bruxos e eram
marginalizados pela igreja. Para que Santa Sara Kali fosse santificada
pela igreja católica, foi preciso trocar sua origem cigana, para de
escrava egípcia. Não se conhece a razão exata que levou os ciganos a
eleger Santa Sara como sua padroeira.
Os dias 24 e 25 de maio
são consagrados ao culto da Santa. Para os ciganos, a peregrinação
festiva até Camargue, para a adoração da santa, é uma tradição sagrada e
secular. Milhares de ciganos de quase todas as regiões da Europa,
África, Oriente e dos quatro cantos do mundo, reúnem-se na pequena
igreja de Saint-Michel em louvor e homenagem a Sara.
Uma semana antes da
festa, numerosas clãs e grupos ciganos, vindos de todas as partes do
mundo, chegam à região para a procissão. A figura da santa negra é
transportada no andor pelas ruas da vila e a viagem termina nas águas do
Mediterrâneo.
A passagem dos ciganos
por aquela vila francesa não tem apenas um objetivo religioso. Durante
cerca de uma semana os ciganos mostram o que a sua cultura tem de mais
belo e tradicional, com os ciganos a encher as pequenas ruas de
Saintes-Maries-de-la-Mer com a música e as danças tradicionais. Os
terrenos em redor da vila são totalmente ocupados pelos acampamentos
ciganos. Mas, salvo raras exceções, as carroças de tração animal do
passado deram hoje lugar às cômodas "roulottes" (ou traillers), com
televisão e parabólica puxadas pelos últimos modelos das mais
conceituadas marcas automóveis. E todos os anos, no dia 24 de Maio, a
história repete-se...
O Local da Peregrinação:
No sul da França, entre os rios Grand Rhône e Petit Rhône, situa-se a planície dos alagados de Camargue.
Camargue tornou-se célebre pelas festas que acontecem na cidade de
LES-SAINTES-MARIES-DE-LA-MER, pacata vila com cerca de três mil
habitantes, região de Provence no sul da França; pelo seu caráter
religioso e peregrino. A serenidade da localidade é abalada com a
chegada dos cerca de dez mil ciganos, que conseguem trazem a cor, o odor
e o som característicos.
Histórias ou Lendas?
Segundo alguns
historiadores, por volta dos anos 50 d.c, uma embarcação teria cruzado
os mares a partir de terras Palestinas levando a bordo para fugir das
perseguições de Roma aos primeiros cristãos, um grupo de personagens
bíblicos: Maria Jacobina ou Jacobé, irmã de Maria, mãe de Jesus, Maria
Salomé, mãe dos apóstolos Tiago e João, Maria Madalena, Marta, Lázaro,
Maximiliano e Sara, uma negra serva das mulheres santas e aportado em
uma pequena ilha situada em águas do Mediterrâneo. Milagrosamente, a
barca sem rumo e à mercê de todas as intempéries, atravessou o oceano e
aportou com todos salvos em Petit-Rhône, hoje a tão querida
Saintes-Maries-de-La-Mer. Sara cumpriu a promessa até o final dos seus
dias. Sara teria sido uma das primeiras convertidas ao cristianismo e
morrido a serviço de suas companheiras de viagem.
Uma outra versão contada
é que Sara era uma escrava egípcia de uma das três Marias, Madalena,
Jacobé ou Salomé; e junto com José de Arimatéia, Trófimo e Lázaro foi
colocada, pelos judeus, em uma barca sem remos e alimentos.
Desesperadas, as três Marias puseram-se a orar e a chorar. Aí então Sara
retira o diklô (lenço) da cabeça, chama por Kristesko (Jesus Cristo) e
promete que se todos se salvassem ela seria escrava de Jesus, e jamais
andaria com a cabeça descoberta em sinal de respeito (acredita-se que
deste gesto de Sara Kali tenha nascido a tradição de toda mulher cigana
casada usar um lenço que é a peça mais importante do seu vestuário: a
prova disto é que quando se quer oferecer o mais belo presente a uma
cigana se diz: Dalto chucar diklô (Te darei um bonito lenço)). Talvez
por um milagre, ou por obra do destino, eles chegaram a salvo a uma
praia próxima a Saintes Maries de La Mer. Depois de muitos dias, o barco
foi resgatado por moradores de uma vila próxima aos arredores da costa
marítima. Todos, por serem brancos, foram acolhidos, exceto Sara, por
ser escrava (egípcia) e negra. Um grupo de ciganos a fez, pois estavam
nas proximidades e presenciaram o fato. Sendo assim, passaram a cuidar
de Sara, que, com sua morte, posteriormente, os mesmos passaram a
recorrer com pedidos à mesma, por ter sido uma pessoa querida em vida, e
esta, os atendeu em espírito, realizando milagres. A partir disso, Sara
se tornou Mãe e Rainha dos Ciganos, honrando-os e protegendo-os. O
surgimento de sua capela - foi criada após a sua morte. Quando veio à
falecer, os Ciganos foram até a igreja da vila pedindo que seu funeral
se realizasse na mesma. Devido ao preconceito, os católicos da época
recusaram. A partir de então, foi feito uma espécie de gruta/igreja para
Sara, visitada até os dias de hoje. Quando em 1935 a Igreja tirou Sarah
de sua Cripta, muitos ciganos se aplicaram à prova do punhal (punhal
avermelhado no fogo sobre a veia do pulso). Diz-se que o Sol queimou o
olhar de Sarah.
Quando o número de
ciganos aumentou, a Cripta não deu para todos, e foi feito um acordo
entre um gadjo chamado "Marquês de Baroncelli" e um cigano chamado
"Cocou Baptista", um chefe cigano muito influente. Até um certo tempo o
acordo foi cumprido, mas os seus sucessores não levaram o trato a
diante. Este chefe cigano foi usado, simplesmente um instrumento do
gadjo, ele foi renegado e expulso pelo povo cigano.
Os ciganos de origem
Calon, com o passar dos anos, alteraram algumas palavras da língua
regional do povo cigano. Devido a estas alterações, houve algumas
modificações idiomáticas no significado das palavras. Entre elas,
podemos citar a palavra Kalin, que em Calon representa a palavra
"cigana". Já para os ciganos que ainda preservam a língua regional, Kali
representa negra. Há algum tempo, existe esta confusão idiomática,
envolvendo a cor da pele da Santa.Para os Calons, seria Santa Sara Kalín
(a cigana) e não Santa Sara - a negra. Paralelamente, a história de
Sarah chegou à Índia, onde os ciganos a associaram à deusa Kali, negra,
poderosa, transformadora.
Outra versão conta que
Sara era moradora de Camargue e teve piedade das Marias, resolvendo
ajudá-las. Também dizem que ela era uma rainha das terras de Camargue ou
uma sacerdotisa do antigo culto celta ao deus Mitra. Uma das
explicações para estas histórias é que em Camargue existiram várias
colônias de antigas civilizações, como a egípcia, a cretense, a fenícia e
a grega. Por isso, muitos poetas e menestréis contaram a história de
Sara, de acordo com o que ouviram de seu povo, e assim, o mito em torno
dessa poderosa santa foi difundido pelo mundo e ela continua, até hoje, a
ser adorada entre as comunidades ciganas. Nos dias atuais, a santa
padroeira dos ciganos é comemorada com muitos rituais e tradições por
mais de 15 milhões de ciganos espalhados em diferentes pontos da Europa,
Ásia, África, Austrália e Nova Zelândia.
Para preservar a
história original de Santa Sara Kali, é necessário lembrar que a igreja
católica santificou-a como SANTA e, que é dessa forma que o povo cigano a
cultua (e não em rituais).
Aqui no Brasil, Santa
Sara divide a preferência dos ciganos brasileiros com Nossa Senhora
Aparecida e São Jorge Guerreiro. Os ciganos brasileiros adoram Nossa
Senhora de Aparecida, talvez por causa de sua cor, e muitos a equiparam à
Santa Sara Kali. Se não têm a imagem dela, por ser difícil encontrá-la,
por certo possui em sua Thiera (barraca) ou casa uma imagem de Nossa
Senhora de Aparecida. Às vezes têm as duas.
Certo é que ela é a mais
venerada Santa para os ciganos e todo acampamento cigano conduz uma
estátua da virgem negra depositada num altar de uma das tendas cercadas
por velas, incenso, flores, frutas e alimentos.
Atualmente, as relíquias
da Santas: Sara, Maria Jacobé e Maria Salomé, encontram-se na capela
alta da Igreja de SAINTES-MARIES-DE-LA-MER; uma construção erguida desde
o século IX, no antigo local do oratório dos discípulos. Contam-se as
lendas que os restos mortais de Sara foram encontrados por um rei em
1448 e depositados na cripta da pequena Igreja de Saint-Michel.
No local são cumpridas
promessas, feitas à Santa Sara Kali. Milhares de velas acesas são
oferecidas à Santa. Em conseqüência disto, o calor torna-se intenso, não
sendo possível às pessoas permanecerem muito tempo no local. Dizem até
que o gás carbônico liberado pela queima das velas tornou a imagem da
Santa Sara Kali escura, havendo até uma modificação na crença da cor da
pele da Santa.
Além de trazer saúde e
prosperidade, Sara Kali é cultuada também pelas ciganas por ajudá-las
diante da dificuldade de engravidar. Para as mulheres ciganas, o milagre
mais importante da vida é o da fertilidade porque não concebem suas
vidas sem filhos. Quanto mais filhos a mulher cigana tiver, mais dotada
de sorte ela é considerada pelo seu povo. A pior praga para uma cigana é
desejar que ela não tenha filhos e a maior ofensa é chamá-la de DY
CHUCÔ (ventre seco). Talvez seja este o motivo das mulheres ciganas
terem desenvolvido a arte de simpatias e garrafadas milagrosas para
fertilidade.
Muitas que não
conseguiam ter filhos faziam promessas a ela, no sentido de que, se
concebessem, iriam à cripta da Santa, fariam uma noite de vigília e
depositariam em seus pés como oferenda um diklô (lenço), o mais bonito
que encontrassem. E lá existem centenas de lenços, como prova que muitas
ciganas receberam esta graça.
As mulheres ciganas também confeccionam saias, com as quais vestem a imagem da Santa.
A proteção de Sarah
confere às pessoas emanações sempre benéficas que representam
simbolicamente o ventre da sua mãe, seu sorriso, a irmã e a rainha: a
"phuri dai" secreta dos Roms. Dizem que a pessoa de bom coração consegue
ver o sorriso na estátua de Santa Sara. Verá que tanto seu sorriso como
o dela estarão diferentes. Para os ciganos a estátua de Sara está
carregada. Nela se condensam as energias sutis de muitas gerações de
ciganos feiticeiros. Ela sempre atende a todos, principalmente às
pessoas que têm a intuição mais desenvolvida e usam os oráculos como
forma de divinação.
É de costume festejar as
slavas (promessas ou comemorações em homenagem a algum santo). A Slava
de Sara Kali é nos dias 24 e 25 de maio. A Slava de Nossa Senhora de
Aparecida coincide com a comemoração dos gadjés, a 12 de outubro. Na
Slava, é oferecido um banquete ao santo homenageado, onde é colocado o
Santo do Dia no centro da mesa, em lugar de destaque e junto a Ele, um
manrô (pão) redondo, que é furado no meio e onde coloca-se um punhado de
sal junto com a vela. Esse pão é posto em uma bandeja cheia de arroz
cru, para chamar saúde e prosperidade e, ao término do almoço, ele é
dividido entre os convidados pelos donos da casa, junto com essas
palavras de bençãos:
THIE AVÊS THIAILÔ LOM, MANRÔ TAI SUNKAI
(Que você seja abençoado com o sal, com o pão e com ouro).
Texto original autoria de:
Thaís
Hélène
Namastê nº 29 - Maio de 2007